quarta-feira, 17 de março de 2010

ESTUDO DE UMA PRÁTICA ESPETACULAR A PARTIR DA ETNOCENOLOGIA

ARTES PERFORMÁTICAS E PRÁTICAS PERFORMÁTICAS:
UM ESTUDO DA CULTURA POPULAR A PARTIR DA ETNOCENOLOGIA. *

Este ensaio pretende lançar um olhar etnocenológico sobre uma manifestação da cultura popular do Estado do Maranhão, a Festa do Divino Espírito Santo. Para tanto, primeiramente é mister construir um entendimento acerca da Etnocenologia. Esta é ainda uma ciência jovem, cujo termo foi cunhado por Jean-Marie Pradier e teve como pedra fundamental, o seu lançamento no Colóquio Internacional de Paris em 1995 com a presença de vários estudiosos que de forma mais ou menos isolada lançavam as bases para o surgimento desta ciência. Em linhas gerais o que a Etnocenologia pretende é o estudo das manifestações humanas extra-cotidianas espetacularmente organizadas, para isso, faz larga utilização da interdisciplinaridade com as outras áreas das chamadas etnociencias, como a etno-história, a etno-psicologia e a etno-botanica, todas com o objetivo único de analisar o ser humano em suas especificidades culturais.
O surgimento da Etnocenologia também está vinculado a uma grande preocupação por parte de seus genitores em entender as formas espetaculares (principalmente as não-ocidentais e as desprovidas dos códigos tradicionais do teatro) a partir de uma perspectiva não-etnocentrica, já que em outras tentativas desse tipo de entendimento, não se chegou a um progresso nem conceitual e nem metodológico para a análise desses fenômenos.
Torna-se importante também elucidar a que noção de espetáculo a etnocenologia se refere. Nesse sentido, o espetáculo diferentemente de um simples evento ou acontecimento social deve ser entendido como um fenômeno extra-cotidiano coletivamente organizado no universo da cultura. Portanto, é importante destacar que a Etnocenologia se ocupa dos fenômenos extra-cotidianos socialmente organizados explicitamente teatrais ou não, não cabendo aqui as criações altamente elaboradas a partir dos cânones do teatro tradicional.
Também a noção de performance, utilizada neste ensaio, tem sua definição conceitualmente alargada com a contribuição de Pearson(1), segundo o qual a performance “não é somente um conjunto de dispositivos e técnicas operacionais destinadas a encenação e a representação de um teatral ou a ilustração de um texto dramaturgico.(...) Ela é específica mas não única. A performance possui pontos comuns com todo um conjunto de atividades, assim como o jogo, o esporte, o rito. Todas essas atividades contribuem para criar um “mundo especial” que é colocado sob o controle dos participantes e são submetidos a regras implícitas ou explícitas: acordos mutuais, tabus, proibições, que marcam seus desencadeamentos, definindo seu mundo especial, reforçando a coerência, a orientação e o movimento.”
Olhar as manifestações espetaculares da cultura popular com o olhar etnocenológico é lançar mão daquilo que primitivamente foi e atualmente não é mais, daquilo que Antonin Artaud chamou de “teatro total”, pois a noção de teatro tal como a conhecemos é uma noção recente, somente a partir do século XVII passou-se a chamar de teatro a montagem e encenação de textos teatrais em lugares específicos para esse fim. De acordo com Silvio D’Amico (in Peixoto, 2003, p.12) a palavra teatro tem sua etimologia do grego theastai (ver, contemplar, olhar) e “designava o local onde aconteciam espetáculos. Mais tarde serve para qualquer tipo de espetáculo: danças selvagens, festas públicas, cerimônias populares, funerais solenes, desfiles militares, etc”.
Resolvidas essas questões conceituais de base, passemos então para a aplicação da Etnocenologia na observação e análise de uma manifestação da cultura popular local, a festa do Divino Espírito Santo.
Na configuração da festa podemos perfeitamente situa-la dentro do universo das manifestações espetaculares por ali existirem vários elementos de aproximação com o universo teatral, tais como cenário, figurino, definição de personagem e linguagem mito-poética, que na maioria das vezes dispensa o uso da comunicação lógico-verbal utilizada no cotidiano. Na festa do Divino Espírito Santo, assim como em outras manifestações populares teatralizadas o elemento teatral se dá principalmente como veículo de comunicação e transmissão de idéias. Abrigada principalmente no seio das Casas de Culto Afro-Brasileiro, sua transmissão às gerações posteriores sempre se deu de forma oral e visual, onde as pessoas aprendiam o que viam e ouviam. Assim como nas demais manifestações religiosas de terreiro que não possuem textos religiosos, sua transmissão só é possível graças a esses elementos que fixam no espaço-tempo seu sistema ideológico.
A configuração da festa, tal como se apresenta evoca suas origens no império português com sua autoridade máxima definida pelo Imperador e pela Imperatriz, que na festa são principais representantes do poder do Espírito Santo na terra. A partir da etnocenologia, porém, podemos buscar desvelar o que está disfarçado sob a égide aparente do fenômeno religioso, pois apesar de toda essa elaboração de ascendência européia, o culto ao Espírito Santo em terras maranhenses adquiriu características muito próprias, reelaboradas e ressignificadas em função não apenas de sua adequação ao contexto local, mas também de sua adoção nos terreiros de culto afro, mesclando assim preceitos religiosos bem diferentes, e algumas vezes até díspares.
O primeiro deles pode ser encontrado no aspecto sincrético do culto que em alguns terreiros onde é praticado dedica-se a alguma entidade do lugar. Assim é que na Casa das Minas(2), a festa é dedicada ao vodum Noche Sepazim “ que representa a imperatriz(...) pois ela adora o Divino Espírito Santo”(FERRETI,1996,p.169).
Um outro elemento é o aspecto sacro-profano da festa, que comporta em sua dinâmica, momentos que escapam a dimensão entendida como puramente sagrada, dois exemplos são a festa grande e o carimbó de caixeiras. Em ambas com forte presença de músicas profanas e bebidas alcoólicas.
Outro aspecto também importante de se observar na festa é o “Império do Divino” que ao mesmo tempo em que evoca as origens da festa, representa o poder temporal do Espírito Santo. Os personagens que o compõem, além da indumentária que lhes caracteriza, adquirem comportamentos emprestados dos nobres que pretende representar; extremamente codificado e cerimonializado, e ainda respeitando rigorosamente a hierarquia que lhes é imposta pelo código do ritual. Este império é composto invariavelmente por crianças em função da imagem de pureza e inocência que estas suscitam.
Na análise etnocenológica da festa podemos situa-la naquilo que o antropólogo Roberto da Matta chamou de “inversão”, onde por determinação não de onde ela surge mas daqueles quem a reelaboram emprestando-lhes significados próprios de seu universo ideológico, os papéis sociais são invertidos. Um desses papéis é a inversão na condição da criança, normalmente vista como incapaz e subordinada ao adulto, durante a festa adquire respeito e reverencia, e o que era visto como incapacidade é agora entendido como ingenuidade e pureza desejáveis aos representantes do Divino na terra.
A outra inversão diz respeito às posições sociais em que, as pessoas que participam da festa, em geral das classes mais baixas da pirâmide social e negras, vivenciam ali momentos de fartura, poder e riqueza jamais possíveis em sua situação cotidiana. O luxo ostentado nas vestes, a reverencia que lhes é dedicada, a fartura de alimentos e bebidas, a movimentação de pessoas, a aura mágicas que reveste seus personagens (principalmente Imperador e Imperatriz), tudo contribuindo para a formação de uma maneira particular de mundo e até mesmo de um mundo idealizado, impossível de ser realizado no cotidiano.Nesse sentido, a festa funciona também como uma espécie de “rebelião admitida”, onde os papéis sociais podem ser invertidos sem prejuízos para a ordem social.
A partir da análise desses elementos pudemos tecer possíveis interpretações das relações que se estabelecem na festa do divino Espírito Santo orientadas pela Etnocenologia que ao dialogar com diversos campos do conhecimento humano amplia a abordagem interpretativa dos fenômenos sociais.

(1)Pearson, Mike. Reflexões sobre a etnocenologia.(trad. Ana Luíza Friedmann) in Etnocenologia – textos selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião(organizadores). Anna Blume. 1999.
(2) Centenária Casa de Culto afro-brasileiro de origem Jeje. Matriarca do culto genuinamente maranhense chamado de “tambor de Mina”.
REFERENCIAS
• Etnocenologia. Textos Selecionados. Christian Greiner e Armindo Bião (organizadores). São Paulo. AnnaBlume.1999;
• Cadernos do GIPE-CIT N.1. Etnocenologia: a teoria e suas aplicações.UFBA.1998;
• Pereira, Keyla Cristina Santana. A festa do Divino Espírito Santo. O Teatro das Memórias Populares: uma análise á partir dos personagens da festa na Casa das Minas.Monografia. Universidade Federal do Maranhão. 2007.
* Keyla Santana – Atriz, arte-educadora e pesquisadora da cultura popular maranhense.